Fonte: Portal Exame
Sempre dá para piorar
Mesmo num país como a Argentina, onde o culto ao drama está impregnado na alma nacional, o conflito entre a presidente Cristina Kirchner e os empresários da área ruralista passou dos limites. A pendenga se arrasta desde o início do ano passado, quando o governo, a fim de reforçar seu caixa, instituiu novos impostos às exportações do agronegócio - as chamadas retenciones móviles. Se a política já parecia absurda aos produtores nos tempos de bonança das altas cotações das matérias-primas do campo, agora - em meio à crise mundial - a coisa soa como um acinte. Em janeiro, as exportações agrícolas argentinas caíram 40% em relação ao mesmo período do ano anterior. Mesmo assim, a maior parte das tais retenciones continua sendo cobrada. Revoltados, os fazendeiros vêm promovendo greves, bloqueios de estradas, panelaços e "tratoraços". Para piorar o panorama no campo, um período severo de seca castiga hoje a maior parte do território argentino. As províncias mais afetadas reivindicam agora não apenas a suspensão dos impostos de exportação como também uma ajuda financeira para amenizar as perdas. Segundo estimativas, o prejuízo do setor pode chegar a 12,5 bilhões de dólares até o final de 2009. Apesar dos apelos, é pouco provável que a presidente Kirchner possa ajudar muito neste momento. O próprio governo enfrenta dificuldades financeiras, com um nível baixo de reservas internacionais e uma dívida pública que já atingiu a proporção de 49,1% do PIB, a maior taxa da América do Sul (veja quadro).
O drama do agronegócio, setor responsável por um terço do PIB do país e mais da metade de suas exportações, é um dos principais componentes da crise econômica que se arrasta há tempos na Argentina e que sobrevive a governos de diferentes linhas ideológicas. Nos últimos anos, o país cresceu a taxas altas, é verdade, mas não o suficiente para recuperar todas as perdas ocorridas após a moratória de 2001. Dessa forma, o turbilhão financeiro mundial encontrou um país ainda com os alicerces fragilizados. O governo, além de não ter dinheiro em caixa para lançar planos de emergência mais eficazes para reduzir os efeitos da recessão, se comporta como um bombeiro que tenta combater o fogo com um latão de gasolina. A questão das retenciones é só um exemplo dos prejuízos provocados pelas inúmeras políticas demagógicas típicas do governo atual. "Ao contrário do que ocorreu em países como o Brasil e o Chile, a sucessão de políticas equivocadas praticadas na Argentina nos últimos anos isolou o país dos mercados internacionais, fazendo com que ele conte com poucas alternativas para aliviar sua travessia pela crise mundial", afirma Ramiro Moya, da Fundación de Investigaciones Económicas Latinoamericanas, em Córdoba.
É consenso entre os especialistas que a Argentina já se encontra em recessão e que o PIB do país deve recuar entre 1% e 2% em 2009, interrompendo uma série de seis anos de crescimento. Os problemas de caixa são prementes. De acordo com um relatório recente da agência americana Moodys, o país não terá problemas para honrar suas dívidas em 2009, mas dificilmente conseguirá saldá-las em 2010 sem recorrer a algum socorro internacional ou a artifícios fiscais, que nada mais são do que eufemismo para chamar a atenção na praça de que há risco de um novo calote. Uma estimativa da consultoria argentina Prefinex fala num buraco no orçamento do governo de quase 8 bilhões de dólares em 2009. Para fechar as contas, uma das únicas alternativas de Cristina Kirchner será recorrer às reservas internacionais do país. Oficialmente, o saldo é 47 bilhões de dólares. Mas, como o governo Kirchner manipula dados como a taxa de inflação, alguns analistas não acreditam nesse número, apostando que o valor das reservas esteja próximo de 20 bilhões de dólares. (Para efeito de comparação, as reservas brasileiras estão hoje em cerca de 200 bilhões de dólares.)
É difícil que essas reservas aumentem significativamente no curto prazo. A era da liquidez internacional chegou ao fim, as exportações argentinas caíram 36% em janeiro deste ano em relação ao mesmo período de 2008 e há opções mais seguras para investidores à procura de oportunidades em meio à crise. Recorrer às amizades do passado tampouco parece ser solução. Durante o mandato de Néstor Kirchner, o presidente venezuelano Hugo Chávez fez generosas compras de títulos da dívida argentina. Mas hoje Chávez tem de lidar com os próprios problemas, agravados pela queda na cotação do petróleo. O clima de incerteza tem elevado o índice que mede o risco-país da Argentina a níveis semelhantes aos da época pré-calote.
Num momento em que a maior parte dos países emergentes vem lançando planos de emergência para amenizar os efeitos da crise, as manobras argentinas têm sido até agora tímidas e desastradas. No início do ano, por exemplo, Kirchner anunciou um pacote de obras de infraestrutura de cerca de 20 bilhões de dólares, centrado especialmente na construção de casas populares e estradas. "Em razão da queda de arrecadação do governo e de seu limitado acesso ao crédito internacional, estimamos que a presidente consiga realizar pouco menos da metade do projeto", diz o economista Nicolás Bridger, da Prefinex, em Buenos Aires. Kirchner também atirou uma boia em direção à combalida indústria automobilística do país, cuja queda de receita para 2009 é estimada em 45%. Para ajudar o setor, a presidente lançou no final do ano passado um pacote de 1 bilhão de dólares na forma de subsídios à compra de automóveis zero-quilômetro. Os efeitos sobre as vendas nos meses seguintes foram pífios, pois o crédito beneficiava essencialmente a população de baixa renda e a oferta se limitava aos automóveis populares fabricados no país. No início deste ano, o governo foi obrigado a reformular totalmente a medida, estendendo os benefícios aos demais consumidores e categorias de veículo.
O fracasso da Argentina no campo econômico representa um dos grandes enigmas da América do Sul. Entre outras vantagens, o país tem uma das maiores áreas agricultáveis do mundo e uma população com nível cultural e renda per capita acima da média do continente. É espantoso que, com esse perfil diferenciado, os argentinos apresentem uma predileção por colocar no poder uma sucessão quase insuperável de políticos demagogos e irresponsáveis. Nesse campo, faça-se justiça, Cristina Kirchner tem se mostrado à altura de Carlos Menem e de tantos outros que ocuparam a Casa Rosada na história recente. "A política é a razão principal dos males econômicos da Argentina", afirma Dante Sica, economista-chefe da consultoria econômica Abeceb, em Buenos Aires.
Embora tenha em relação ao vizinho uma rivalidade que transcende ao campo de futebol, o Brasil não tem nada a comemorar diante da situação. A Argentina foi o segundo maior parceiro comercial do país até o ano passado, posição que deixou para a China. Por causa da crise e de uma série de novas barreiras alfandegárias impostas por Kirchner para tentar proteger as empresas do país, as exportações de produtos brasileiros para a Argentina caíram quase 50% no primeiro bimestre deste ano. Quem continua vendendo para lá paga mais caro pela operação. Devido ao risco de calote e ao ambiente político inconstante e imprevisível, a Argentina entrou para a lista negra das empresas seguradoras de crédito para exportação. "Algumas dessas companhias nem sequer aceitam fazer apólices de seguro para exportações para a Argentina", diz Tatiana Moura, gerente de seguros de crédito e garantias da Marsh Brasil, uma das corretoras líderes em seguros para exportação no país. Isso mostra que, apesar de a situação argentina inspirar boas piadas (uma das que estão correndo na praça fala sobre a possibilidade de aproveitamento do craque Messi na seleção de Dunga no caso de falência do país), o drama do vizinho é, na verdade, uma enorme fonte de dor de cabeça para o Brasil.