Um texto ótimo, escrito por Michael Reid, para o Portal Exame. Pra quem acredita no Brasil e que investir aqui, vale a pena.
_______________________________________________
Há exatos dez anos, em agosto de 1998, a Rússia dava o calote em sua dívida e desvalorizava o rublo. Na visão de muitos investidores financeiros, o Brasil, com sua taxa de câmbio atrelada ao dólar e grande déficit em conta corrente, era o próximo da fila, a "bola da vez". Quatro meses depois veio a traumática desvalorização do real, que o governo Fernando Henrique Cardoso se esforçara muito para evitar, com um grande custo financeiro para o país. Muitos comentaristas viram na desvalorização a derrota do Plano Real e do empenho de FHC em estabilizar e modernizar o Brasil. Na verdade, ela marcou a consolidação da nascente estabilidade do país e criou o trampolim para o crescimento.
Como chefe da sucursal da revista The Economist em São Paulo entre 1996 e 1999, convenci-me de que o Brasil estava engajado num processo de reforma democrática e modernização econômica que, apesar de lento, paulatino e cercado de problemas, era sólido e duradouro, como escrevi na época. Mas foi preciso quase uma década para esse esforço dar frutos e tornar-se visível para aqueles cujo conhecimento do Brasil se limita a estereótipos datados. Um primeiro revés surgiu em 2001, com os blecautes e as reverberações do colapso financeiro na Argentina. A conversão de Luiz Inácio Lula da Silva à causa da estabilidade econômica - uma contribuição vital para o sucesso do país - veio tarde demais para impedir outro surto de nervosismo financeiro em 2002. Para conter a decorrente elevação acentuada da inflação, foi preciso um ano de taxas de juro altas e estagnação. Depois, o escândalo do mensalão levantou o espectro da instabilidade política. Mais uma vez, o Brasil parecia ter um desempenho aquém de seu potencial - como sempre, o país do futuro distante.
Há dois anos apenas, ainda era grande o ceticismo no exterior sobre a possibilidade de o Brasil realmente pertencer ao Bric, o clube de grandes países em desenvolvimento que, para economistas do Goldman Sachs, dominarão a economia mundial até 2030. Comparado com os outros - Rússia, Índia e China -, o Brasil era visto como uma tartaruga econômica, contida por uma taxa de crescimento morosa, altas taxas de juro, desempenho educacional fraco, infra-estrutura deficiente, desigualdades profundas, violência e uma dificuldade generalizada para fazer negócios. A maioria desses problemas é real. Mas o Brasil hoje se coloca entre os países do Bric mais por seus méritos comparativos que por seus defeitos.
A China sempre será um caso à parte em razão de seu tamanho. Mas os protestos no Tibete e a violência em Xinjiang durante os preparativos para os Jogos Olímpicos foram um lembrete de que seu regime político autoritário esconde uma instabilidade potencial. Alguns analistas começam a perceber que, apesar de toda a força de suas empresas de alta tecnologia e sua elite que fala perfeitamente o inglês, a Índia ainda é muito pobre, não dispõe de uma infra-estrutura moderna e enfrenta conflitos religiosos. E, nos últimos meses, a Rússia lembrou ao mundo por que ela é uma aposta arriscada. Sua resposta brutal à malfadada tentativa da Geórgia de retomar a Ossétia do Sul afugentou investidores estrangeiros. O governo autoritário da Rússia a torna inerentemente imprevisível. E sua economia depende pesadamente de petróleo e gás natural.
Agora, outra vez a moeda brasileira e a bolsa estão caindo. Desta vez, as causas do nervosismo são majoritariamente externas. Os próximos meses vão colocar à prova a estabilidade brasileira. Ainda assim, é preciso destacar que o Brasil tem, comparativamente, muitas vantagens. Seu crescimento econômico pode não ser espetacular, mas avançou solidamente. O nível atual de 5% pode parecer minúsculo comparado ao da China ou ao da Índia, mas o Brasil está crescendo sobre uma base muito superior: sua renda per capita está em 4 720 dólares, ante 2 010 dólares da China e 820 dólares da Índia, segundo dados do Banco Mundial. O Brasil já teve sua "fase chinesa", com crescimento em torno da média anual de 9% dos anos 50 aos 70, sustentado por uma combinação do trabalho de migrantes do campo com o capital industrial. Diferentemente da Rússia (e da Venezuela), o crescimento brasileiro não depende hoje de uma única commodity: suas exportações variam de minério de ferro, soja e suco de laranja a carros e aviões a jato. Acima disso tudo, o Brasil tem a possibilidade de vir a ser uma superpotência energética graças ao etanol de cana-de-açúcar e às novas descobertas de petróleo.
Boa parte do crescimento está sendo gerada pela expansão da demanda doméstica. Isso é um tributo ao sucesso da estrutura política construída após a desvalorização de 1999, com taxa de câmbio flutuante, metas de inflação estabelecidas por um Banco Central operacionalmente independente e uma meta fiscal que envolve grandes superávits primários para reduzir gradualmente os encargos da dívida pública. Essas políticas provaram seu valor no ano passado, quando países de todo o mundo foram atingidos pelos demônios gêmeos de preços recordes do petróleo e escassez de crédito. Os investidores notaram a ação firme do Banco Central, elevando por diversas vezes a taxa Selic neste ano para enfrentar o aumento da inflação, induzido pelos altos preços internacionais do petróleo e dos alimentos. A aparente determinação do BC, a despeito dos uivos de protestos (de alguns setores do governo inclusive), oferece motivos para confiar num arcabouço firme e estável para o crescimento.
A nova imagem internacional do Brasil não decorre apenas de seu crescimento, suas políticas econômicas e seus padrões de comércio. Também se deve ao fato de que, à diferença de China ou Rússia, o Brasil tem uma democracia cada vez mais robusta. O progresso social é palpável. A proporção de brasileiros vivendo na pobreza caiu de 48% em 1990 para 33% em 2006, segundo a Comissão das Nações Unidas para América Latina e Caribe. Pela primeira vez em décadas, a desigualdade está diminuindo de maneira consistente - ao contrário do que acontece na China e na Índia. E, como assinalou o economista Marcelo Néri, da Fundação Getulio Vargas, os jovens adultos agora entram na força de trabalho com três anos a mais de escolaridade do que no início dos anos 90. É essa combinação de crescimento estável, base diversificada de recursos naturais, política democrática relativamente previsível e progresso social que está criando uma sociedade de classe média que atraiu a atenção externa para o Brasil nos últimos dois anos. Essa mudança de atitude é simbolizada num aporte recorde de 35 bilhões de dólares em investimento estrangeiro direto no ano passado e na concessão de uma avaliação de crédito com grau de investimento no início deste ano. Isso se reflete também na decisão da União Européia de estabelecer "uma parceria estratégica" com o Brasil.
Mas as tormentas das últimas semanas sublinham que ainda é cedo para os brasileiros cantarem vitória, pedirem outra caipirinha e irem para a praia. O desempenho econômico foi bastante favorecido, nos últimos anos, pela alta dos preços de suas exportações de commodities. Mas, com a economia mundial entrando em recessão, os preços das commodities estão em queda livre. Essa percepção já está enfraquecendo o real. Se fosse moderada e gradual, a desvalorização da moeda daria um benéfico impulso às exportações de não-commodities do Brasil. Mas é abrupta. Aumentará as pressões inflacionárias e poderá exigir a manutenção de taxas de juro relativamente altas por algum tempo. Isso, por sua vez, pode causar problemas a uma classe média cada vez mais endividada, cujo novo status ainda é frágil. O impacto no balanço das empresas significa que o crescimento desacelerará fortemente no próximo ano. Assim, seria útil que uma política fiscal mais dura desse "um pouco mais de ajuda" no combate à inflação, como observou recentemente o presidente do BC, Henrique Meirelles.
Se há uma vantagem na crise, é a possibilidade de que o governo perca o sentimento de ter ganhado na loteria com o petróleo do pré-sal. Os grandes descobrimentos de petróleo induzem um senso de complacência de que os políticos precisam apenas "administrar a abundância", na notória frase de José López Portillo, presidente do México quando este descobriu um grande campo novo de petróleo. (López Portillo acabou presidindo a bancarrota de seu país em 1982.) Com o petróleo caindo para cerca de 50 dólares o barril, é evidente que a exploração do pré-sal será mais lenta.
A crise pode também fazer com que os políticos percebam que o Brasil poderia estar muito melhor. O emprego formal vem crescendo, mas o código trabalhista de Mussolini, abrasileirado por Getúlio Vargas, continua condenando muitos brasileiros à pobreza e à baixa produtividade da economia informal. O governo ainda tira muito em impostos e dá muito pouco em serviços de qualidade em troca. O sistema de previdência social precisa ser reformado. As infra-estruturas de transporte e de energia elétrica precisam de mais investimentos. Sobretudo, a qualidade da educação continua desastrosa, como mostraram os testes do estudo Pisa, da OCDE, que avalia estudantes em mais de 60 países. E a violência pode ter começado a diminuir, mas continua assustadoramente alta. A combinação entre educação fraca e violência, a menos que seja enfrentada, limitará a queda da pobreza e da desigualdade.
Não há dúvida de que o sistema financeiro internacional precisa de regulação mais forte e melhor. Mas, para o Brasil, o risco maior agora é que os políticos tirem conclusões erradas da crise. Com seu projeto de estatizar os fundos previdenciários privados da Argentina, a presidente Cristina Kirchner tem levantado o espectro de uma volta ao estatismo dos anos 70 na América do Sul. Se o Brasil tentar segui-la nesse caminho, estará jogando fora boa parte do que avançou na última década.